201610.26
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Exigências indevidas para concessão do alvará de habite-se.

Os municípios brasileiros, frequentemente, se valem de via oblíqua para cobrança de débitos dos contribuintes. Dentre eles, a Administração Pública Municipal condiciona a liberação do Alvará de Habite-se a exigências que não encontram qualquer amparo legal ou constitucional.

O Alvará de Habite-se é um ato vinculado da administração pública. Nas lições de Hely Lopes Meirelles, os atos vinculados são aqueles para os quais a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização[1].

Isto significa que a atuação da Administração Pública Municipal se restringe à verificação dos pressupostos estabelecidos pela norma legal. Uma vez preenchidos os requisitos constantes na lei, está o Município do Salvador, através da Secretaria Municipal de Urbanismo (SUCOM), obrigado a liberar o alvará de habite-se, não podendo negar a sua concessão por critérios de conveniência e oportunidade.

A Lei Municipal n. 3.903/88, que institui normas relativas à execução de obras do Município do Salvador, nos artigos 35 e seguintes, dispõe sobre o procedimento e os documentos necessários à conclusão de obra e expedição do “Habite-se”.

O art. 38 da mencionada lei elenca, taxativamente, as exigências técnicas necessárias à concessão do alvará de habite-se, constando, dentre elas, a necessidade de integral observância ao projeto ou peças gráficas aprovadas; adequação na pavimentação de todo passeio adjacente ao terreno edificado; ligação do sistema de esgoto sanitário à rede do logradouro e o correto escoamento das águas pluviais do terreno edificado[2].

A caráter vinculado do alvará de habite-se resta ainda mais evidenciada através dos ensinamentos de Hely Lopes Meirelles:

“A polícia das construções efetiva-se pelo controle técnico funcional da edificação particular tendo em vista as exigências de segurança, higiene e funcionalidade da obra segundo a sua destinação e o ordenamento urbanístico da cidade, expresso nas normas de zoneamento, uso e ocupação do solo urbano[3]”.

Neste diapasão, a apreciação do requerimento do alvará de habite-se deve – ou pelo menos deveria – se limitar aos aspectos de regularidade da construção e da obra.

Contudo, não é neste sentido a atuação da Administração Pública Municipal. É usual o condicionamento da expedição do alvará de habite-se à regularização de pendências no CADIN Municipal[4] ou substituição da TRANSCON[5] pela outorga onerosa, aspectos estes que não se relacionam com as exigências técnicas necessárias à conclusão do empreendimento.

Quanto ao CADIN, o Município do Salvador pauta sua estapafúrdia exigência no Decreto Municipal n. 24.419/13 – ato infralegal –, de acordo com o qual a existência de registro no CADIN Municipal impede órgãos e entidades da Administração Municipal de realizarem a expedição de quaisquer tipos de alvarás, licenças ou autorizações decorrentes ou não do Poder de Polícia Municipal[6].

Apesar da atuação desarrazoada da Administração Pública Municipal, os tribunais brasileiros, incluindo o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia[7], têm rechaçado a prática ilegal e abusiva de condicionar a concessão do alvará de habite-se à regularização das pendências no CADIN Municipal.

No tocante à substituição de TRANSCON por outorga onerosa, o Município do Salvador se vale do argumento de que muitas TRANSCONs foram supostamente emitidas com irregularidades, tendo sido suspensas por força do já mencionado Decreto Municipal n. 24.236/13, motivo pelo qual a Administração Pública Municipal condiciona a liberação do alvará de habite-se a esta regularização.

Não obstante, os tribunais brasileiros[8] não coadunam com esse posicionamento e entendem que tal exigência consiste em meio de coerção para sanar eventual equívoco da própria Administração Pública Municipal.

Neste particular, apesar do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia ainda não ter se manifestado sobre o tema, os juízes, em primeiro grau, têm rechaçado a exigência do Município do Salvador de condicionar a emissão de Habite-se à solução de pendências relacionadas à utilização indevida da TRANSCON[9].

Atos desta natureza, dos quais se pretende valer a Administração Pública Municipal, constituem meio coercitivo e via imprópria para cobrança de débitos, práticas rechaçadas tanto pelo ordenamento jurídico brasileiro, por violação ao princípio constitucional do devido processo legal, insculpido no art. 5°, LIV da CF/88[10], quanto pela jurisprudência pátria.

Isto porque o Município do Salvador deve se valer de ação própria para cobrança de débitos inscritos no CADIN, como também da via judicial adequada para discussões acerca da (ir)regularidade da emissão da TRANSCON e eventual cobrança da outorga onerosa.

O próprio Supremo Tribunal Federal rechaça a utilização de qualquer via oblíqua para cobrança de débitos, motivo pelo qual editou os enunciados de números 70, 323 e 547 da Súmula do STF[11], que vedam a Administração Pública de estabelecer sanções ou impedimentos para o contribuinte em débito, como forma oblíqua para pagamento de eventuais encargos tributários.

Assim, apesar da edição de normas municipais que “legitimam” a atuação arbitrária da Administração Pública Direta, de uma forma geral, os Tribunais brasileiros têm coibido a prática destes atos, em respeito ao devido processo legal, fundamentando suas decisões na impossibilidade de condicionamento da emissão de alvará de habite-se, seja por pendências no CADIN, seja por irregularidades na emissão da TRANSCON, por existir ação própria para discussão destas matérias, dentre elas, a execução fiscal.



[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 25ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p 156.

[2] Art. 38 da Lei Municipal n. 3.903/88 – O Alvará de Habite-se só será concedido quando: I – for integralmente observado o projeto ou peças gráficas aprovadas; II – estiver adequadamente pavimentado todo passeio adjacente ao terreno edificado, se já houver meios-fios assentados; III – tiver feita a ligação do sistema de esgoto sanitário à rede do logradouro ou, na falta desta, à adequada fossa séptica e ao sumidouro; IV – estiver assegurado o correto escoamento das águas pluviais do terreno edificado; V – for apresentado certificado de perfeito funcionamento dos elevadores, quando for o caso, expedido pela empresa montadora do equipamento.

[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 495.

[4] Cadastro Informativo de créditos não quitados no setor público municipal.

[5] Transferência do Direito de Construir.

[6] Art. 3º do Decreto Municipal n. 24.419/13. A existência de registro no CADIN Municipal impede os órgãos e entidades da Administração Municipal de realizarem os seguintes atos, com relação às pessoas físicas e jurídicas a que se refere: V – expedição de alvarás de licença, de autorização especial, ou de quaisquer outros tipos de alvarás, licenças ou autorizações decorrentes ou não do Poder de Polícia Municipal.

[7] TJ-BA. Reexame Necessário nº 0514097-08.2015.8.05.0001. Órgão Julgador. Quinta Câmara Cível. Desembargadora Relatora Carmem Lucia Santos Pinheiro. Data de Publicação 29/01/2016; TJ-SP. Agravo de Instrumento AI 00004404020168260000 SP 0000440-40.2016.8.26.0000. Desembargador Relator Ponte Neto. 8ª Câmara de Direito Público. Data de julgamento. 27/01/2016; TJ-PE. AGV 2455443 PE 0012516-24.2011.8.17.0000. Desembargador Relator Fernando Cerqueira. Órgão Julgador Primeira Câmara de Direito Público. Data de julgamento 26/07/2011; TJ-SC. Apelação cível em Mandado de Segurança 360881 SC 2004.036088-1. Desembargador Relator Vanderlei Romer. Órgão Julgador Primeira Câmara de Direito Público. Data de julgamento 06/10/2005.

[8] TJ-DF – RMO: 463575420098070001 DF 0046357-54.2009.807.0001, Relator: JOSÉ DIVINO DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 15/02/2012, 6ª Turma Cível, Data de Publicação: 01/03/2012, DJ-e Pág. 159.

[9] Decisões interlocutórias proferidas nos processos 0536087-21.2016.8.05.0001, 0518025-98.2014.8.05.0001 e 0562048-61.2016.8.05.000, órgão julgador: 5ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Salvador, Estado da Bahia.

[10] Art. 5°, LIV da CF/88 – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

[11] Súmula 70 do STF. É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.

Súmula 323 do STF. É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.

Súmula 547 do STF. Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.