201702.10
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O negociado sobre o legislado: o que isso significa?

Por Ana Paula Studart.

Muito tem se falado a respeito do “negociado sobre o legislado”. Essa expressão voltou a ser abordada pela mídia em razão de alguns projetos de leis que compõem a denominada reforma trabalhista. O legislado é composto pelos direitos trabalhistas previstos na Constituição Federal e na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).  O negociado se constitui nos Acordos Coletivos de Trabalho (ACT) ou Convenções Coletivas de Trabalho (CCT), que podem ser firmados pelos sindicatos das categorias dos trabalhadores com uma ou mais empresas (ACT) ou entre os sindicatos das categorias de trabalhadores e os sindicatos das categorias das empresas (CCT).  Os ACT e CCT são normas coletivas de trabalho, juridicamente reconhecidas no texto constitucional. Essas normas podem estipular outras condições de trabalho, que também regerão os contratos de trabalho por elas abrangidos.

O art. 7º da Constituição dispõe e elenca os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social. Esse artigo consagra o que a doutrina jurídica denomina de princípio da vedação do retrocesso social. Segundo este princípio, a inovação legislativa ou normativa deve ocorrer para beneficiar os trabalhadores. Contudo, o próprio texto constitucional, ao dispor sobre os diversos direitos dos trabalhadores, também estabelece aqueles que os sindicatos de trabalhadores, empresas e respectivas organizações sindicais podem dispor de outra forma, para adequar as condições de trabalho à realidade das empresas.           

A prevalência da negociação coletiva sobre o legislado não é fenômeno atual. Essa possibilidade sempre foi permitida no sentido de favorecer o trabalhador, através da concessão de direitos e vantagens não previstos na lei ou melhorando o mínimo nela estabelecido. Contudo, agora se busca também que seja permitida a redução dos direitos e benefícios assegurados. A convenção e os acordos coletivos perderiam seu papel de fonte suplementar do Direito do Trabalho para assumir um papel de regulador de interesses e objetivos econômicos, sob a justificativa da necessidade de se criar mais empregos ou manter os postos de trabalho existentes, observados alguns limites como a não contrariedade a Constituição.

A base dos argumentos favoráveis a essa prevalência é a necessidade de mudança e de adequação da legislação trabalhista à atualidade, além do fato da crise econômica enfrentada pelo país implicar numa necessária reforma trabalhista e consequente flexibilização da legislação. Para os que defendem a prevalência, a própria Constituição previu a possibilidade de se ajustarem condições de trabalho mediante acordo ou convenção coletiva, não havendo o que se falar em impossibilidade de sobreposição do convencionado sobre o legislado, mesmo porque não há qualquer restrição de normas favoráveis ou prejudiciais para dar validade à negociação.

A grande maioria da doutrina e os diversos setores da sociedade brasileira, por sua vez, criticam de forma veemente e expõem muitos argumentos contrários à proposta de prevalência do negociado sobre o legislado. Para os críticos, o que se pretende é reduzir direitos dos trabalhadores, configurando um retrocesso social, e, dessa forma, diminuir os riscos e os custos das empresas, aumentando suas margens de lucro. Segundo essa corrente, a CLT vem sendo reformada desde a segunda metade do século passado, o que não justificaria o fundamento de necessidade de mudanças e reformas na legislação.

No âmbito judicial essa matéria também não é nova. O Tribunal Superior do Trabalho vem sinalizando hipóteses em que se admite uma maior “flexibilidade” nos acordos ou convenções coletivas, desde que incluídas contrapartidas explícitas e compensatórias quanto ao que fora negociado. Por outro lado, o TST tem negado a possibilidade da supressão de direitos através de negociação, o que seria uma falsa concessão de vantagens camuflada na pura e simples retirada de um direito assegurado em lei.

Apesar de a Constituição ter valorizado a autonomia coletiva, a Justiça do Trabalho mantém uma tendência de forte intervenção nessa autonomia, ainda que observados os patamares civilizatórios mínimos. Ao fazer um diagnóstico da situação atual da Justiça do Trabalho e das dificuldades enfrentadas, Ives Gandra Filho, presidente do Tribunal Superior do Trabalho, apontou, além dos defeitos e imperfeições em nossa legislação social, três causas principais: a complexidade do sistema processual e recursal e o desprestígio dos meios alternativos de composição dos conflitos sociais. Para o presidente do TST, as soluções para a superação desse quadro são a racionalização judicial, a simplificação recursal e a valorização da negociação coletiva.

Os demais ministros do TST, por sua vez, assinaram um manifesto contrariando a opinião do presidente do Tribunal, no qual afirmam que muitos aproveitam a fragilidade em que são jogados os trabalhadores em tempos de crise para desconstituir direitos, desregulamentar a legislação trabalhista, possibilitar a dispensa em massa, reduzir benefícios sociais, terceirizar e mitigar a responsabilidade social das empresas.

Assim, da análise dos julgados e de todas as manifestações feitas sobre o tema, percebe-se que o TST, em sua maioria, entende pela não prevalência do negociado sobre o legislado. Diversos são os fundamentos utilizados, mas destaca-se o entendimento de que a negociação coletiva só deve prevalecer quando ampliar direitos e benefícios já existentes ou conquistar novos, mas não para reduzir ou restringir.  

Com relação ao STF, alguns julgados vêm demonstrando que a Suprema Corte possui entendimento diferente do TST, entendendo pela prevalência do negociado sobre o legislado.

O STF já expôs que a Constituição prestigiou a autonomia coletiva da vontade como mecanismo pelo qual o trabalhador participará da formulação das normas que regerão a sua própria vida, inclusive no trabalho, bem como que os acordos e convenções coletivas são instrumentos legítimos de prevenção de conflitos trabalhistas, podendo ser utilizados, inclusive, para redução de direitos trabalhistas. Para a Suprema Corte, o sindicato é legalmente um legítimo representante dos empregados e suas decisões devem ser respeitadas. Além disso, o STF entende que no âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho e, como consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual.

O STF, ao assegurar a prevalência dos acordos coletivos, não só altera o posicionamento do TST como também antecipa a reforma trabalhista. Com essas recentes decisões da mais alta Corte do país, constatamos que os efeitos pretendidos com a reforma trabalhista têm se concretizado, independentemente da aprovação dos Projetos de Lei que tratam do “negociado sobre o legislado”.

Muito se tem discutido sobre a adaptabilidade das normas trabalhistas em face das mudanças ou das dificuldades econômicas e a alternativa encontrada e defendida por muitos é a prevalência do negociado sobre o legislado. Na negociação empregadores e empregados podem levar em conta as suas reais necessidades e possibilidades. Contudo, acredita-se ser fundamental que a legislação trabalhista discipline e estabeleça um mínimo, para evitar abusos de quem detém o poder econômico. As normas trabalhistas necessitam, sem dúvida, de maior dinamismo, mas sempre respeitados princípios gerais e normas constitucionais, bem como princípios próprios deste ramo.

Acredita-se que, se for efetivada a prevalência do negociado sobre o legislado, os entes sindicais irão amadurecer, na medida em que os próprios trabalhadores representados pela categoria terão maior consciência na hora de eleger os seus representantes e decidir o seu futuro, bem como irão cobrar uma postura mais ativa e efetiva desses representantes.

No final do ano passado, o governo anunciou um projeto de lei que flexibiliza as relações trabalhistas e prevê onze itens que poderão ser negociados entre empregadores e empregados, caso a medida seja aprovada pelo Congresso. Entre essas possibilidades estão o parcelamento das férias em até três vezes, com pagamento proporcional aos respectivos períodos, sendo que uma das frações deve corresponder a ao menos duas semanas de trabalho; jornada de trabalho, com limitação de 12 horas diárias e 220 horas mensais; participação nos lucros e resultados; jornada em deslocamento; intervalo; extensão de acordo coletivo após a expiração; entrada no programa de seguro-desemprego; plano de cargos e salários; banco de horas, garantido o acréscimo de 50% na hora extra; remuneração por produtividade; trabalho remoto e registro de ponto.

Ressalte-se que para ter validade, o acordo tem de ser feito entre sindicato da categoria e empresa, aprovado pela assembleia de trabalhadores. Os sindicatos poderão manter representações no local de trabalho, sendo que os dirigentes terão estabilidade no emprego. O projeto de lei, apesar de dividir opiniões, se aprovado, diminuirá a incerteza sobre a validade dos acordos, que muitas vezes são derrubados pela Justiça do Trabalho, o que gera insegurança e medo de contratar por parte dos empregadores.

Assim, acredita-se que o principal aspecto em questão é a busca pelo equilíbrio entre a autonomia e a negociação coletiva e os direitos fundamentais dos trabalhadores. É preciso que sejam estabelecidos parâmetros que norteiem a negociação, dando maior segurança a patrões e empregados, ao negociarem novas condições de trabalho, principalmente em contextos de crise econômica. Para tanto, defende-se que não seja possível a supressão de direito trabalhista constitucional e legalmente assegurado, nem a flexibilização de norma relativa a medicina e segurança do trabalho, o que foi observado no recente projeto de lei.